quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Sobre o encerramento do blog

O blog acaba aqui, amigos. Depois de longos dois anos e 87 postagens, o blog chega ao fim. Já vinha matutando essa ideia de encerrá-lo há um tempo, mas isso só veio a se oficializar agora, no mês em que o blog completaria dois anos de existência.

Vários motivos me levaram a encerrar o blog. O principal deles é uma coisa chamada "fase". Na vida - por mais clichê que isso soe -, tudo são fases. E, por dois anos, era a fase de postar aqui. Agora essa fase já passou. Nas últimas semanas, inclusive, eu vinha me sentindo obrigado a postar no blog. Chegava a quinta-feira e eu pensava "putz, preciso de um texto pra postar no blog". Os últimos textos, aliás, nem foram postados em uma quinta-feira. Já não fazia mais sentido. Não era mais uma coisa natural. E eu já não me sinto mais tão confortável em partilhar minhas decepções amorosas com vocês.

Aliás, essa foi a razão que me fez dar início a uma série de postagens sobre amor. Nunca entendi direito o que significa o tal do amor. E não entendo até hoje. Em todos os textos até aqui, divaguei em busca de algo que pudesse - mesmo que minimamente - definir esse sentimento vezes-tão-amplo-vezes-tão-ínfimo. Infelizmente, não consegui. Mas vocês se identificaram com minhas ideias, e eu fico feliz com isso.

(Insira aqui uma legenda legal)

Você não têm ideia de como é bizarro escrever sobre zilhões de decepções amorosas e ver que as mais diferentes pessoas se identificam com aquilo que você escreve. Ou o quão absurdo é o fato de que aquilo que você escreve causa os mais diferentes tipos de sentimentos nas pessoas. Demorei muito para me acostumar com isso. Mas a resposta aos textos do blog sempre foram muito positivas, e isso me fez continuar. Até agora.

Fiz questão de que a última postagem dessa humilde página fosse um Top 10 de textos feitos ao longo desses dois anos de blog. Nessa lista, o número 1 é o conto sobre Marcelo e Clarice. O conto teve uma repercussão absurda, algo que me surpreendeu. Todos já se sentiram envolvidos (ou ainda vão se sentir) nessa história de duas pessoas diferentemente complementares. É a lei da vida. É o preceito do amor. Talvez por isso tenha rolado tamanha identificação.

A boa notícia é que grande parte dos textos desse blog estará presente em "Alice", o livro que eu venho escrevendo há algum tempo, e que deve chegar às mãos de vocês no ano que vem - caso a vida e o tempo decidam cooperar com este que vos escreve. "Alice" é outro dos motivos que me levam a encerrar o blog, já que pretendo dar um pouco de atenção à continuação do livro.

Minha hiperatividade - somada às minhas múltiplas personalidades - não vai permitir que eu fique muito tempo sem escrever. Portanto, logo menos vou aparecer com algum outro projeto, algo que seja mais condizente com a fase atual da minha vida.

É isso. Agradeço a todos que gastaram preciosos minutos de suas vidas lendo sobre as decepções amorosas desse pseudo-escritor-com-problemas-de-oratória. Vocês provavelmente sabem mais da minha vida do que eu mesmo.

Acreditem, não é preciso muito.

Acervo estrábico: a biblioteca da memória

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Sobre as postagens mais legais

Oi. Então, as pessoas vivem me perguntando quais são os textos que eu mais gosto e coisas do tipo. Por isso, decidi fazer um "top 10" de textos aqui do blog, e explicar os motivos pelos quais desenvolvi certo apreço por determinadas postagens. Vamos lá:

9 - insônia. (9/10/2012)
Alguém tinha postado no Facebook um vídeo do Nando Reis cantando All Star, e eu fiquei com os versos na cabeça. Tem alguma coisa de Los Hermanos ali também. Esse é um dos poucos textos do blog que foi escrito diretamente a alguém, e é sobre uma mina que tá até hoje na minha vida (coisa rara, aliás). Acho que, se num futuro prévio, eu chegar a me relacionar com alguém de novo, vai ser com essa mina. Ela merece estar aqui.

Eu sempre gostei de amores que não dão certo. É legal escrever sobre esse tipo de amor. Bem mais legal do que escrever aqueles textos mimimi de jovem apaixonado. Nos meus textos mais antigos, rolava mais essa coisa de depressão/obscuridade da relação. Com o tempo, essa característica foi sumindo. Mas aí eu tava numa relação que parecia me puxar para trás, e eu não me sentia bem nessa situação - mas não fazia nada para sair dela. Por isso, o melhor a fazer era escrever. E isso trouxe de volta um desses textinhos de amor triste que eram feitos com frequência. Gosto desse texto.

7 - silêncio. (28/9/2012)
É o texto pessoal mais antigo dessa lista. Também faz parte da "fase 2" do blog, antes do padrão começando com "sobre". Esse texto tem uma história engraçada. Eu tava no 2º semestre da faculdade, e era apaixonado por uma mina de lá. Mas era paixão platônica. Nunca falei com a mina. Um dia descobri que a banda preferida dela era Smiths, dai né... Enfim, a mina saiu da faculdade e eu nunca cheguei a falar com ela. Só a observava, de longe, criando diálogos na minha cabeça. Esses diálogos nunca viraram realidade, e por isso o texto se chama "silêncio".

Esse é recente. E é bem diferente dos outros textos do blog, justamente por ser um conto desses mais compridos. Eu tava meio enjoado das minhas postagens clichês, e queria dar uma diversificada. Tempos antes disso, um rapaz no Twitter tinha me mandado um conto do Bukowski, e eu fiquei com aquilo na cabeça. Como nunca tinha feito um conto desses, decidi me arriscar. E fiz uma versão "light" desse conto do Bukowski, voltado pro meu tipo de escrita. Gostei bastante do resultado.

Primeiro texto da fase atual do blog, começando com o "sobre". Cara, esse texto tá em quinto, mas poderia estar em primeiro tranquilamente, devido ao que ele representa. Em dezembro de 2012, eu fui apresentado a Francis Scott Fitzgerald. E putz... depois disso, tudo mudou. Finalmente me "descobri" como escritor. A escrita do Fitzgerald é fantástica, e me inspirou de diversos modos. Hoje em dia, é tudo meio Fitzgerald. Por isso dou tanta atenção à descrição. Enfim, eu tinha acabado de ler "This side of paradise", primeiro romance do Fitzgerald, e fiquei meio surtado com tudo aquilo. Era demais pra mim.

4 - mr confusion. (23/7/2012) / Infinito - O manifesto (19/11/2012)
Decidi juntar esses dois pois ambos foram escritos para o Lucas (Fresno). Eu sempre fui muito fã de Fresno, e em 2012 eu tava meio fascinado pelo Lucas. Lembro que no primeiro texto eu também tava numa fase clichê, e queria diversificar. Daí resolvi escrever como se estivesse vendo o mundo através dos olhos do Lucas. Busquei muita coisa no fotolog dele, com a intenção de parecer que aquele era um texto escrito por ele mesmo. No segundo, a mesma coisa. Mas foi voltado pro lançamento do "Infinito" (disco da Fresno). Tenho um carinho muito grande por esses textos, porque todos os meus amigos fãs de Fresno pegaram a ideia e se identificaram com aquilo. Também fico feliz pelo fato de o Lucas ter lido os dois textos e elogiado. Rendeu muito mais do que esperado.

Um dos últimos textos do blog. E, sobre esse, não há segredo. Eu não ouvia Cícero há um tempo, e voltei a ouvir, assim, do nada. Logo que as músicas começaram, eu pensei "cara, eu preciso fazer um texto sobre isso". Foi isso. Fiquei mais ou menos uma semana pensando em como faria esse texto, e, no fim, deu muito mais certo do que eu imaginava.

Ainda sobre aquela história de "achar um estilo de escrita". Nesses textos, eu encontrei. (Inclusive, fiz vários outros textos nesse mesmo "molde", mas esses dois são os que mais gosto.) A ideia era simples: fazer dois textos, de modo a expor os contrapontos do amor. São antônimos. Antíteses. Ressalta aquela famigerada bipolaridade que ronda os nossos instintos amorosos. Sempre que houver amor, vai haver antítese. Minha escrita é sobre isso.

1 - Sobre Marcelo e Clarice: o conto (começado no dia 27/6/2013)
Ahhhh, Clarice ♥ Sabe aquela coisa do escritor desenvolver carinho pelo personagem? Então, isso acontece por aqui também. Posso dizer, sem medo de errar, que esse conto é a "obra-prima" desde humilde blog. Gostaria de tê-lo evoluído mais, mas tinha medo de estragá-lo. Então encurtei um pouco as coisas. Ainda assim, é o meu preferido. É a história de duas pessoas diferentemente complementares, que se precisam para coexistirem em paz. Mas nem sempre dá pra coexistir em paz. A Clarice sabe bem disso.

¨¨
Bônus - Primeira postagem do blog: 181-274 (27/9/2011)
Meu deus, que texto ruim. Eu já tinha uns textinhos escritos, e decidi dar início ao blog. Já faz dois anos, cara. Muita coisa mudou desde então. Com exceção do fato de eu continuar falando sobre amor sem o menor conhecimento de causa.

ps: fiz toda essa lista ouvindo Arctic Monkeys. milagres acontecem. definitivamente.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Sobre querer

- Se você fosse um livro do Nietzsche, eu te quereria.

Eu quero.

Eu quero sentir.

Eu quero voltar a sentir.

Eu quero voltar a sentir aquele formigamento estranho nas pernas nos nossos momentos a dois.

Eu quero sentir aquele famigerado frio na barriga antes das nossas repentinas saídas.

Eu quero me sentir inseguro. Eu quero te fazer sentir insegura.

Eu quero as incertezas. Não quero as tuas incertezas.

Eu quero cantar aquele refrão que me faz lembrar de você. (Não queria que ele me fizesse lembrar de você.)

Eu quero os sussurros. Não quero o silêncio.

Eu quero sua melodia desarmoniosa. Não quero os acordes em ré maior.

Eu quero entender o que é o tal do amor.

Eu quero que você me ensine o que é o tal do amor. (Com aquelas aulas práticas que só você sabe aplicar.)

Eu quero acordar, sair correndo pela casa, abrir a porta e gritar para o mundo que quero você.

Mas a vida não é só querer.

Ainda assim, eu te quero.

Mesmo que seja sem querer.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Sobre Marcelo e Clarice: o conto

(Foto por Luiza Veras)

Cena 1ª
A história a seguir é um relato sobre o amor passageiro que atordoou completamente a vida de Marcelo e Clarice. Se possível, lhes peço para que leiam em voz baixa. Clarice está com dor de cabeça.

O telefone toca. Clarice move-se vagarosamente para atendê-lo.
- Marcelo? São 3h30 da manhã. O que aconteceu?
- Precisava ouvir tua voz. Tô mal, Clarice. 

Marcelo acorda todos os dias às 5h30 da manhã para ir à escola. Quer dizer, 5h30 é o horário em que o despertador dele toca. Marcelo já está acordado bem antes desse horário. Tem sido difícil dormir com tudo o que anda acontecendo.
Clarice não tem um horário certo para acordar. Muitas vezes o relógio marca 15h e ela ainda está na cama, procurando motivos para se levantar (ela raramente encontra). A vida dela está bagunçada. Ela está no último ano de artes cênicas, mas já não está tão animada como no começo do curso. Além disso, a mãe dela está desempregada e voltou a ter problemas com bebida (algo que, de certo modo, também acaba interferindo na vida de Clarice).

Marcelo está no último ano do colegial. Já estamos em junho, e ele ainda não sabe o que pretende cursar na faculdade. Marcelo gosta da área de humanas. História o fascina, mas não como antes. Recentemente, ele tomou gosto por política. Passa horas na biblioteca do colégio revirando livros sobre Geopolítica. Filosofia e Sociologia também estão entre suas matérias favoritas.
Clarice nunca se interessou pelos estudos. Cursa teatro desde pequena. Também fez cursos de inglês e alemão, mas não terminou nenhum dos dois. É no palco que ela se encontra (ou, pelo menos, se encontrava). Tem sido difícil se concentrar durante as peças. Ultimamente, Clarice nem tem frequentado as aulas.

Marcelo se interessa por literatura estrangeira, filmes e seriados. Ele vinha lendo "O retrato de Dorian Gray", obra de Oscar Wilde. No entanto, aparentemente sem motivo, optou por abandonar a leitura, já que o livro passou os dois últimos dias jogado em cima de sua cama, estranhamente aberto na página 84. Quando não está com a cabeça enfiada em um livro, se mete a assistir filmes dos mais diversos tipos, especialmente os de ficção. O download de inúmeros seriados comprometeu a memória do notebook de Marcelo. Talvez seja necessário fazer um backup. E talvez não seja só o notebook que precise de um backup...
Clarice sequer lembra do último livro que leu. Tampouco tem assistido filmes ou seriados, algo que ela costumava fazer com frequência. Televisão? Muito menos. Quando não está dormindo, ela se tranca na internet. O histórico de seu computador indica uma bizarra obsessão por serial killers e armas. Clarice tem até um estilete, já desgastado, que ela usa para desferir cortes contra o próprio pulso. O ato de se cortar com estilete não é uma novidade para Clarice, mas se tornou muito mais frequente com o passar do tempo.

Marcelo costumava ser um jovem muito fechado. A música o ajudou a melhorar nesse aspecto. Ele fez aulas de música e hoje toca piano, violão e gaita. Se tornou mais comunicativo, mas às vezes só consegue se expressar através da música.
Clarice não toca nenhum instrumento. Ela até tentou aprender a tocar piano quando era menor, mas desistiu rapidamente. Clarice nunca foi muito comunicativa, e tem crises de depressão. O teatro sempre foi sua zona de conforto, mas parece que isso foi perdendo efeito ao longo dos anos. Ela também pratica o "backup": sempre quando sua memória está beirando a lotação, ela pega o seu diário e passa algumas dessas informações para lá. Esse backup resolve. Momentaneamente.

Os pais de Marcelo morreram em um acidente de carro quando ele ainda era pequeno; com isso, ele foi criado por seus avós maternos. O avô dele faleceu há alguns anos, e hoje a avó é tudo que lhe resta. Marcelo tem uma afeição enorme por sua avó e faz de tudo para vê-la feliz. A avó também faz de tudo por ele, mas não consegue vê-lo feliz pois perdeu a visão em um trágico incidente com gás de cozinha. Mas ela sente a felicidade do neto. Ou melhor, sentia. Marcelo não anda feliz.
Clarice não sabe, mas foi fruto de um estupro. Sua mãe pensou em abortá-la por diversas vezes, mas não conseguiu. Isso explica a falta de carinho da mãe para com a filha. Isso também explica o fato de a mãe de Clarice ter se refugiado no alcoolismo. Hoje, ela é uma mulher de meia idade que passa a maior parte do tempo na sala de casa, bêbada, tentando, em vão, recuperar o amor da filha. Pena que elas só tenham uma a outra.

Marcelo está louco para completar 18 anos e tirar carteira de motorista. Desde que o avô faleceu, o carro continua na garagem, intacto, sendo observado diariamente por Marcelo, que não vê a hora de dirigi-lo. 
Clarice tem carteira de motorista há três anos, mas nunca dirigiu um carro. Ela sequer tem interesse em dirigir; só tirou a carta devido à pressão imposta por sua mãe, que prontamente lhe deu um carro de presente. O carro ainda está lá, imóvel, empoeirado pelo tempo.

Sobre Clarice:

"Ela está longe de ser a melhor pessoa do mundo. Mas tenho quase certeza de que é a melhor pessoa que já conheci. Afinal, o que é que essa menina tem?
Ela não se esforça pra ser legal comigo (nem com ninguém) e me trata com frieza durante quase todo o tempo. Mas quando estou a ponto de perder a paciência, lá vem ela com todo aquele charme que lhe é característico. Sou obrigado a baixar a guarda. Ela me desmonta.
Não. Eu não quero que me esqueça.
Sou Clarice. Dos pés à cabeça."

Para Marcelo: 

"A vida é engraçada. Antes de te conhecer, não me via conectada a nada. Também não enxergava nada que me prendesse a esse mundo. Não que eu esteja conectada ou presa a você, mas é bom saber que agora eu consigo ver um ponto de partida. Nunca te disse isso. E provavelmente nunca te direi. Mas eu gostaria que soubesse.
Um dia, se tudo der certo, não precisarei mais fazer essas cartas, pois serei capaz de te dizer tudo isso abertamente. Enquanto esse dia não chega, continuarei a te escrever, na esperança de que você possa se encontrar nas minhas palavras.
Não quero tuas sonatas em ré.
Marcelo, eu quero ser tua. Da cabeça ao pé."

Não ouse levantar a voz. Clarice ainda está com dor de cabeça.

Cena 2ª
Clarice, uma jovem aparentemente decidida, mas igualmente inconstante. Desiludida, visivelmente desgastada e, ainda assim, extraordinariamente deslumbrante. Simplesmente Clarice.
No momento, tudo que faz é lamentar o rumo que sua vida havia tomado. Quem a examina com cuidado, consegue notar a vermelhidão de seus olhos, que, num rosto quase tão pequeno quanto a sua vontade de existir, ganham um destaque assustador. Os cabelos compridos e acobreados contrastam com uma aparência frágil, beirando a debilidade.
Clarice traça movimentos lentos, e, com muita dificuldade, consegue se erguer da cama. Arrastando-se pelo quarto, chega até a porta. Uma voz rouca, cansada e completamente fragilizada ecoa pelo corredor, quase como em um filme de suspense, onde a personagem se encontra em uma situação traumatizante.
- Mãe, você pegou o meu cigarro?
- Não, Clarice. Procura direito que deve estar aí no seu quarto.
Clarice não se lembrava, mas tinha fumado todo o maço durante a madrugada, enquanto se martirizava por ter, novamente, entrado em conflito com Marcelo. Não era necessário ser um gênio para perceber que os dois estavam à beira da colisão. O choque ainda nem havia acontecido, e o corpo de Clarice já tinha sentido o baque, num claro prenúncio de que, àquela altura do campeonato, o impacto poderia ser fatal.
- O que você quer aí, Clarice?
- Tô procurando a vodka. Você já tomou tudo de novo?
- Clarice, eu sou rica. RICA! Eu bebo whisky, não vodka. Sua vodka tá ali do outro lado.
Em um movimento brusco, Clarice pega a garrafa de vodka e sobe as escadas em direção ao seu quarto, retraída. Uma furiosa troca de olhares abreviou o que poderia ter se tornado outra grande discussão. Clarice já não se importava com os comentários da mãe. Ela, obviamente, tinha coisas mais importantes para se preocupar. Bem mais importantes, aliás.

23h33 
Garrafa-cheia

"Marcelo, eu acho que te odeio. 

Quem é que foi que te deu a liberdade de entrar na minha cabeça e bagunçar tudo aquilo que existia dentro de mim? 

Certamente não fui eu.

Revirei todas as gavetas. Tudo que achei foram cartas e mais cartas, que eu já não sei se foram escritas para você. Vasculhei todo o meu armário, tentando, em vão, encontrar algo que pudesse funcionar como um estímulo motivacional.

Desisti."

00h06
Garrafa-meio-cheia

"Marcelo, eu provavelmente te odeio.

Às vezes fico pensando como você reagiria caso descobrisse que te escrevo com tanta frequência. Se, porventura, você entrasse no meu quarto e encontrasse todos esses pedaços de mim, que deixei espalhados pelo chão para que você não se perdesse. Ou melhor, para que você se encontrasse. 

Antes era tudo muito Clarice.

Agora é tudo meio Marcelo."

00h14
Garrafa-meio-vazia

"Marcelo, eu realmente te odeio.

Odeio seu tom sarcástico.
Odeio seu jeito debochado.
Odeio esse seu gosto por história,
e o meu gosto pela nossa história.
Odeio esse pensamento que vem,
quando vejo o piano ali na sala.
Eu te odeio de muitas formas.
Nenhuma delas é suficiente."

00h41
Garrafa-vazia

"Ahhhhh Marcelo, como eu queria te odiar."

Clarice, uma jovem desvanecida sobre a cama de cetim. Bêbada, visivelmente desgastada e, ainda assim, extraordinariamente deslumbrante. Simplesmente Clarice.

Cena 3ª
Marcelo, um jovem filosoficamente impulsivo, e politicamente inconstante. Confuso, visivelmente desgastado, e, ainda assim, extraordinariamente prático. Simplesmente Marcelo.

Preocupado com Marcelo, que há dias não aparece no colégio, Henrique decide visitá-lo depois da aula para saber o que está acontecendo, mesmo que ele já tenha ideia do que se passa com seu melhor amigo.

Henrique toca a campainha e espera pacientemente até que alguém venha atender a porta.

- Oi, Dona Natalina. O Marcelo tá por aí?
- Quanto tempo, Henrique! Sobe lá, acho que só você consegue tirar esse menino daquele quarto.

Henrique bate na porta e espera pacientemente até que Marcelo venha abri-la.
Mas ele não vem.
Henrique bate novamente.
Em vão.

O rapaz decide entrar no quarto e se depara com o caos. A impressão é de que um maremoto bagunçou todo aquele lugar. Um maremoto de informações, talvez. De informações não tão bem assimiladas.

Fotos e livros espalhados por todo o quarto.
Gavetas e armários abertos e totalmente revirados.
Latas de energético empilhadas sobre a prateleira.
Uma garrafa de whisky pela metade ajuda a decorar o ambiente.
Praticamente escondido em meio a tudo isso, está Marcelo, jogado sobre a cama. Imóvel.

Henrique decide não acordá-lo. Prefere aproveitar o momento para perscrutar o quarto e tentar entender o que se passa com seu melhor amigo. Dentro de uma das gavetas da cômoda, um papel rosado, manchado de sangue, lhe chama a atenção.

"Para Marcelo:

A vida é engraçada. Antes de te conhecer, não me via conectada a nada. Também não enxergava nada que me prendesse a esse mundo. Não que eu esteja conectada ou presa a você, mas é bom saber que agora eu consigo ver um ponto de partida. Nunca te disse isso. E provavelmente nunca direi. Mas eu gostaria que soubesse.
Um dia, se tudo der certo, não precisarei mais fazer essas cartas, pois serei capaz de te dizer tudo isso abertamente. Enquanto esse dia não chega, continuarei a te escrever, na esperança de que você possa se encontrar nas minhas palavras.
Não quero tuas sonatas em ré.
Marcelo, eu quero ser tua.
Da cabeça ao pé.

Clarice"


A lista com as últimas chamadas do celular de Marcelo era particularmente perturbadora. Durante os dois últimos dias, ele recebeu diversas ligações de Clarice. Nenhuma delas foi atendida.
Intrigado, Henrique ainda tenta olhar mais algumas coisas no celular, mas a bateria acaba logo depois. Frustrante.

Em ritmo lento, Marcelo desperta. Estranhamente, ao abrir os olhos e enxergar Henrique mexendo em suas coisas, sequer esboça reação. Um olhar desorientado e distante é prontamente confrontado por um olhar de reprovação.

- O que você tá fazendo aqui, cara?
- Você sumiu. Não dá notícias. Ninguém sabe de você. Até sua vó tá preocupada, Marcelo. Olha em volta. Te liga na zona que tá o teu quarto. O que você tá fazendo com a sua vida, cara?
- É a Clarice. Ela me desmonta.

Henrique era um bom amigo. Marcelo sabia disso.

Marcelo, um jovem impulsivamente filosófico, e musicalmente abalado. E não era para menos: seu coração havia sido demitido por justa causa.

Talvez não tão justa assim.

Ato Final
O telefone toca. Marcelo move-se vagarosamente para atendê-lo.
- Clarice? São 3h30 da manhã. O que aconteceu?
- Precisava ouvir tua voz pela última vez. Tô mal, Marcelo.

Um estranho arrepio percorre toda a extensão do corpo de Marcelo, que se levanta da cama rapidamente. Assustado, se limita a balbuciar palavras incompreensíveis. Do outro lado da linha, nenhum som é ouvido.

Marcelo se lembra de que a mãe de Clarice tinha voltado para a clínica de reabilitação, e que por isso a garota está sozinha. Ele sabe que precisa agir.
Marcelo se veste e vai de carro até a casa de Clarice, que fica há poucos quarteirões de distância. No caminho, várias coisas passam por sua cabeça.

Na casa de Clarice, o silêncio predomina. Isto é, até a chegada de Marcelo, que adentra o lugar aos berros, clamando pelo nome daquela que há meses lhe havia conquistado o coração.
O eco é grande. No entanto, nenhum som é ouvido de volta.
Marcelo, ofegante, sobe as escadas com dificuldade, ainda clamando pelo nome de Clarice.
Novamente, somente o som de sua voz é ouvido.

Ao entrar no quarto de Clarice, Marcelo percebe que a bagunça normalmente vista dera lugar a uma estranha organização. Algo não estava certo. E Clarice não estava lá.

A mente de Marcelo é pura desordem. Encurralado pelo medo, ele já não consegue mais gritar por Clarice. Um silêncio ensurdecedor toma conta do ambiente.
Os passos de Marcelo ficam mais rápidos. Ainda assim, imprecisos.

Ele passa pelo corredor, checa os outros quartos, desce as escadas novamente em direção à sala e nada. O silêncio é cada vez mais amedrontador. Nada se ouve, somente a respiração ofegante do rapaz.
Os batimentos cardíacos de Marcelo ficam mais rápidos. Ainda assim, imprecisos.

Por impulso, ele resolve checar a cozinha.

Marcelo, um jovem impulsivamente certeiro!

Em cima da mesa da cozinha, é possível observar uma garrafa de vodka meio-cheia.
Caída, ao lado da mesa, pode-se ver uma alma completamente vazia.
Ao se aproximar, Marcelo vê sangue em volta do corpo de sua amada.
Ao olhar para ela, vê uma garganta profundamente cortada.
Repousando ao lado do corpo, um estilete já bem conhecido.
Não tão longe dali, estava um papel de carta, igualmente desvanecido.

 -

Se for possível, lhes peço para que leiam a carta em voz baixa. Marcelo está com dor de cabeça.


quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Sobre as nossas canções de apartamento

(Desenho por Anna Brandão)

Primeiro ensaio sobre Cícero

- Fala pra ele que a vida é um peão
"Se tu soubesses como machuca, não amaria mais ninguém."

Você chegou. Eu nem vi. Quando percebi, já estávamos rodopiando por aí, dispensando todo e qualquer tipo de sensatez. E, se por um minuto que seja, quisermos voltar ao modo sensato, é melhor sairmos perguntando por aí. De par em par.

Vê se tira esse sorriso amarelo,
e vamos partir.
(rodopiando)
De vez em quando, rumo ao castelo,
passando a vez, buscando o belo.
(vulgarizando)

Vê se te acalma, Cecília. Um dia eu te levo para ver o mundo girar de cima.

Mas só quando o Carnaval passar.

Segundo ensaio sobre Cícero

- Fala pra ele que a vida é um avião
"Se tu soubesses como machuca, me amaria mesmo assim."

Eu esqueci. Ou melhor, não percebi. Pelo interfone, era difícil manter a calma, te ouvindo sussurrar sonhos e contos, prelúdios e afagos. Por isso, não te vi entrar. Nem tive tempo de me arrumar, ou de saber o que falar. A casa agora é sua. Mas eu nem sei.

Conta pra mim,
dessa tua pressa,
do teu pesar.
Desse teu medo
ao caminhar.
Conta pra mim,
das tuas mágoas,
da tua sina.
Mas não te assusta,
porque eu te empresto
minha neblina.

Qualquer coisa é melhor que tristeza. Mas quem se importa? É sexta-feira, amor. 

Até os elefantes cegos estão sentindo o nosso amor.

Terceiro ensaio sobre Cícero

- Fala pra ele que a vida é um balão
"Se tu soubesses como machuca.... nahhhh, tu sabes."

Era tempo de pipa, mas ninguém sabia. No horizonte, só se enxergava o desalinho, criado por nós dois. E nossa pipa voou assim, por entre as árvores, no desconforto. A linha enrolou. E agora, quem é que vai desatar os nós de nós? Daqui pra já, eu e você.

Ele esqueceu,
mas foi sem querer.
É sempre sem querer.
Ele esqueceu,
da Rita Lee
ao Tom Jobim.
Chegou o fim.
Mas só pra ele,
e não pra mim.

E se eu te falar que a vida é um balão? Repare na enorme quantidade de vidas enfeitando o céu. Tem de todas as formas, de todas as cores.

É a desordem colorida.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Sobre o mais louco amor de virada de ano

Era o último dia do ano, e sua vida ainda não fazia sentido.

As promessas feitas no último dia do ano anterior não foram levadas a sério, e por isso se perderam ali pela metade do mês de março. Incrivelmente, pouca coisa mudou desde então.

O dia está quente, como é de costume no mês de dezembro. Tão quente que, apesar da brisa, o calor se faz sentir. Se olharmos em volta, podemos ver uma quantidade absurda de pessoas trajando a menor quantidade possível de roupas. Ainda assim, o calor se faz sentir.
Ali perto da praia, sentado de frente para o mar, é possível observar um homem de cabelos longos e gestual engraçado, que parece já estar acostumado ao calor. Trajando apenas uma bermuda jeans, que acaba antes mesmo de chegar ao joelho, o homem chama a atenção devido a sua palidez. Provavelmente, ao fim do dia, sua pele terá uma coloração avermelhada, tal como a camiseta que repousa tranquilamente em seus ombros. O rapaz em questão, descrito superficialmente por esse infame narrador, é Ramón.

Enquanto movemos nossos olhares para observá-lo atentamente, Ramón arrasta o seu corpo de magreza indiscutível até a beira da água. Uma pausa. E então ele adentra o mar e mergulha nas ondas nem tão calmas daquela segunda-feira de calor agoniante.
Ao sair da água, recolhe sua camiseta e caminha tranquilamente até o quiosque mais próximo, onde se senta em um dos bancos e continua a observar o mar. Mais uma pausa.

- Amigo, me traz uma água de coco por favor.

O quiosque, como de costume, estava lotado, e eu não estou muito certo de que o garçom tenha ouvido o pedido de Ramón. De qualquer forma, ele deu as costas para o balcão e continuou a encarar o oceano, com olhar arrefecido. Outra pausa.
Pela primeira vez, Ramón desvia os olhos do oceano, e os aponta na direção de uma jovem que caminha rumo ao quiosque. A jovem, quase tão branca quanto ele, tinha uma aparência delicada, e não demonstrava tanta intimidade com o calor. Muito pelo contrário. Seu incômodo com o clima era visível, e a tornava intrigantemente sensual, devido aos movimentos que fazia na tentativa de amenizar a sensação térmica. Troca de olhares.

- Garçom, vê uma água de coco pra mim.

Novamente, não estou seguro de que o garçom tenha ouvido o pedido, que, desta vez, foi feito por uma voz feminina, em um tom suave, assemelhando-se a um sussurro. A jovem, detentora desta voz, inclinou-se sobre o balcão, atraindo olhares daqueles que estavam por perto. Dois minutos de pausa. O quiosque está lotado. O calor está insuportável.
A jovem desvia seu olhar na direção de Ramón, que já a estava observando e prontamente corresponde ao olhar, esboçando um sorriso. Substituindo seu olhar de análise por um olhar mais sensual, a moça caminha na direção de Ramón, estonteante.

- Costuma ser assim o ano todo? - pergunta.
- Não sei se te entendi.
- A praia. O calor. Esse monte de gente aglomerada no balcão. É assim durante todo o ano?
- Ah, não. Piora bastante nessa época do ano. Todos decidem vir a praia.
- Foi assim com você?
- Mais uma vez, não sei se te entendi.
- Você aproveitou o calor e decidiu vir passar a virada na praia. É isso?
- Na verdade não. Eu moro aqui há alguns anos, tô na praia independentemente do clima. Conversa interrompida.

O número de pessoas próximas ao balcão continua a aumentar, fazendo com que a atmosfera do ambiente torne-se cada vez mais desagradável. O calor é surreal, e a palavra "privacidade" já não mais existe naquele lugar.

- Tem muita gente aqui. Quer dar uma volta pela praia pra gente conversar? - pergunta a moça, em tom apaziguador.
O convite é prontamente aceito.
Pequena pausa na história. A sede já se faz sentir. Eles partiram sem a água de coco.

- (...) e por que você escolheu vir morar aqui, Ramón?
- Já percebeu que estamos conversando há mais de uma hora e você ainda nem me disse o seu nome?
- E nem vou dizer. Que diferença faria?

E a conversa segue assim por algum tempo, com Ramón tentando - sem sucesso - descobrir mais sobre a moça que o seduzira, enquanto fornece a ela mais e mais informações sobre sua vida. Embora se esforce no jogo de palavras, Ramón não é páreo para a garota, e acaba sendo facilmente seduzido por ela.

- Tô hospedada num hotel aqui perto. Quer ir comigo até lá? - pergunta a garota, inclinando levemente a cabeça, com expressão sugestiva.
- Eu ainda nem sei nada sobre você, sua maluca. Por que eu faria isso?
- Porque você me quer.
Mais uma pausa. Silêncio absoluto. Intensa troca de olhares.

- Eu tô indo, Ramón. Você vem ou não? - questiona, com ar de superioridade, antes de virar as costas e sair andando.
O calor nunca esteve tão intenso.
- Espera aí, garota - grita Ramón, ao sair correndo atrás dela. - Por que você acha que eu deveria ir?
- Eu não acho nada. Te fiz um convite. Você é quem sabe.

Ramón continua a acompanhá-la, mas, desta vez, sem dizer nenhuma palavra.

- Qual o problema, Ramón? Tá com medo de mim?
- Não. Mas tô começando a achar que deveria.
- Então por que continua me acompanhando?
- Não sei. Mas seu jeito me deixa intrigado.
- Cuidado. Muitos homens já morreram assim.
Pausa.

A conversa não dura muito. Em poucos minutos, eles chegam ao hotel.

- Tá esperando o que pra entrar? - pergunta a jovem, enquanto alisa suavemente seus longos cabelos castanhos.
- Tô aqui pensando num bom motivo pra eu fazer isso - retruca Ramón, com expressão irônica.
- Se não for entrar, fecha a porta antes de ir embora, porque vou me trocar.

Antes que Ramón pudesse vir a tomar qualquer decisão, a jovem começa a se despir, parecendo não se importar com a presença dele. E ela age com extrema sensualidade - ainda assim, de forma natural.
Logo após tirar a parte de cima do biquíni, ela se vira para Ramón e o olha diretamente nos olhos. Pequena pausa. Ninguém mais ligava para o calor.

- Tá olhando o que, cara? Fecha a porta ao sair - diz, mais uma vez em tom de sussurro, esbanjando provocação. Mais uma pausa. Ela definitivamente sabia como provocá-lo.
- Ahhhh garota, você é mesmo maluca! - sussurra Ramón, segundos antes de fechar a porta e se jogar em cima dela, de modo voraz.

Na cama, uma troca de olhares - mais intensa do que nunca - dita o ritmo dos movimentos, que são convincentes e sinuosos.

- Ramón, posso te fazer uma pergunta? - diz a garota, ao forçar suas mãos contra o peito dele.
- Porra, agora?
- Qual a coisa mais louca que tu já fez?
- Sei lá, meu. Estar na cama com uma mina maluca e que eu nem sei o nome com certeza é uma delas.
De todas as pausas, essa foi a mais curta
A garota esboçou um sorriso. 
Ramón permaneceu sério.

O ar condicionado do quarto estava ligado na temperatura mínima, atenuando assim o calor até então agoniante. Apesar disso, o corpo dos dois suava exaustivamente, enquanto traçavam movimentos cada vez mais insinuantes, repetidos incontáveis vezes. Longa pausa. O calor diminuiu. O cansaço se faz sentir.

- Porra, como é que eu vim parar aqui? Eu ainda nem sei seu nome, caralho - desabafa Ramón, enquanto coça a cabeça.
- Mas você ainda tá resmungando por causa disso? Relaxa, cara - diz a jovem, enquanto se levanta da cama, ainda nua.
- Tá com sede? - pergunta, mostrando uma garrafa de água para Ramón.
- Não. Eu tô puto. Como é que é teu nome?
Pequena pausa. A jovem dá um leve sorriso, e permanece em silêncio, entrando no banheiro.

Ramón ouve o barulho do chuveiro, e volta a resmungar, dessa vez para si mesmo.
- Essa maluca filha-da-puta. O que é que ela tá fazendo comigo? Três minutos de reflexão.

Ramón levanta e entra no banheiro, decidido a descobrir informações sobre aquela "maluca filha-da-puta". Quando a vê tomando banho, entretanto, volta a sucumbir, e se junta a ela. Poucos segundos de frustração.
Decepcionado com sua fraqueza, Ramón desconta sua raiva na garota, com movimentos cada vez mais intensos, amenizados pela água quente que cai em suas costas. A jovem o havia seduzido de novo, e, dessa vez, sem dizer ao menos uma palavra.

Enquanto se veste, Ramón não esconde sua frustração. Não obstante, continua obcecado por aquela maluca de cabelos castanhos e voz sussurrante.

- Tu ainda tá puto comigo?

Ramón permanece em silêncio, e se levanta para ir embora.

- Tá indo pra onde?
- Tô indo embora. Você já se divertiu, não é? Agora eu vou voltar pra minha vida. Você é maluca, menina! - diz Ramón, com confiança, antes de fechar a porta do quarto. Pausa.

A garota abre a porta do quarto, e grita por Ramón. Pequena pausa. Ele se vira, olhando-a fixamente nos olhos.
- Prazer, Verônica.

Ramón não demonstra nenhuma reação, e dá as costas para ir embora. Porém, ao virar o corredor, todo o hotel pôde ver o largo sorriso que surge em seu rosto. Seis horas de pausa.

O Sol já não é mais visto. No entanto, o calor continua arrebatador. Mas Ramón não parece se incomodar com isso. Sentado na praia, de volta ao local onde tudo começou, seu pensamento está unica e exclusivamente naquela maluca filha-da-puta, que agora ele sabe que se chama Verônica.
Sua palidez, como já era de se esperar, dera lugar a uma vermelhidão repentina. Degustando a água de coco pausadamente, ele parece distante. Seus olhos miram a imensidão do oceano, mas fazem uma recapitulação precisa de cada detalhe do corpo de Verônica. "Ahhhh Verônica..." 
Ramón sabia que precisava vê-la de novo. 
Ramón sabia que precisava tê-la de novo.

Enquanto pensa no que fazer, Ramón ouve um barulho ao seu lado, seguido de uma voz já conhecida. Meia pausa.
- Posso me sentar contigo, ou tu ainda tá puto comigo? - diz Verônica, em tom sutil, encarando Ramón intensamente.
- Qual é o teu problema hein menina? - rebate Ramón.
- Nenhum. Só não gosto de falar muito de mim.
- Você é maluca.
- Eu sei. Mas você não parece se importar com isso.
- Você que pensa.
- E tu tá preocupado com o quê? Se eu fosse te matar, já teria feito isso há muito tempo.

Aquele tom irônico, estranhamente familiar, deixava Ramón cada vez mais fascinado por Verônica.
E ela sabia disso.
E ele sabia disso.
E eles se beijaram.
E o deslumbre de uma noite de verão se tornou só mais um deslumbre.

- Tô indo pra Fortaleza. Quer ir comigo?
- Do que é que você tá falando, menina?
- Eu sou assim, tô sempre viajando. Passei esses últimos dias no Rio, mas cansei daqui. Tô indo pra Fortaleza essa noite.
- E a virada de ano?
- Vou passar na estrada, ué. Tô acostumada já.
- Você é maluca.
- Eu sei.
8 minutos de conversa pausada.

- Eai, tô indo. Vai comigo ou não?
- Claro que não, sua maluca. Eu mal te conheço.
- Você que sabe, Ramón. Foi bom te conhecer.

Verônica dá meia-volta e entra no carro. Ramón a observa tranquilamente.
Maluca último dia do ano viagem carro Fortaleza calor Verônica intensidade respira recupera o fôlego olha através da janela eu sei que vai passar. No momento, o cérebro de Ramón funciona assim, sem pausas. Intenso.

Verônica coloca a cabeça para fora do carro e arrisca um último sussurro.

- Qual a coisa mais louca que tu já fez?

Ramón sabia o que ela queria dizer.

- Ah, eu vou. Foda-se. É o último dia do ano - gritou, extasiado.

E assim sua vida começava a fazer sentido.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Sobre o compasso do coração

Antônimos polivalentes
Hoje, tudo que eu mais queria era sentar na cama e escrever sobre a sensação de pertencer a algum lugar. (Tenho pensado bastante nisso, ultimamente.) Porém, quando o lápis toca o papel, as coisas não saem como o esperado, e o "pertencer" continua sendo algo que não me é familiar.

Lembra da bússola que você me deu, quando completamos 6 meses de namoro? Eu ainda a tenho, mesmo depois de todos esses anos. E eu ainda a uso para me nortear, sempre que pareço estar perdendo o rumo.

E, por mais que façamos de tudo para nos encontrar, nosso amor seguirá assim.

Em ritmo descompassado.

Sinônimos incongruentes
Hoje, tudo que eu mais queria era deitar ao seu lado e te falar sobre a sensação de pertencer a algum lugar. (Eu ando com isso na cabeça, recentemente.) No entanto, quando nossos corpos se tocam, as coisas saem diferente do esperado, e o "pertencer" parece estar desenhado em cada um dos nossos movimentos.

Lembra das coisas que você me disse, logo depois de nos conhecermos? Você nunca mais tornou a repeti-las, mesmo após todos esses anos. Mas eu ainda as guardo na memória, e procuro me guiar através delas, já que você sempre me faz perder o rumo.

E, se por um momento nos sentirmos perdidos, nos encontraremos assim.

Seguindo o compasso do coração.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Sobre amores e ensaios

Ensaio sobre amor consensual

- Augusto, por que me encaras tanto?

Percebi que a matemática do amor anda meio desatualizada. Ontem, ao analisar nossas equações, vi que chegamos a resultados diferentes. E, neste caso, a divergência de resultados não é positiva. Nunca foi.
Enquanto calculava a probabilidade de chegarmos a um consenso, incontáveis lágrimas escorriam por toda a extensão do meu rosto, quase como daquela vez em que deixamos o chuveiro ligado simplesmente porque estávamos eufóricos demais para percebermos que a água continuava a cair. Desta vez, entretanto, a euforia não se fazia presente.

Ainda que elevássemos nosso amor a mais alta potência,
não chegaríamos a uma decisão sensata.
Mas, afinal, de que importa?
Nossa matemática nunca foi exata.

Se nosso amor estivesse de alguma forma relacionado com a matemática, ele seria aquela equação de segundo grau, que precisa de fórmula para ser resolvida.

Pena que essa fórmula ainda não foi inventada.

Ensaio sobre amor paradoxal

- Augusto, por que não me olhas nos olhos?

Percebi que a filosofia do nosso amor anda meio desvirtuada. Ontem, enquanto conversávamos, vi que não estávamos mais na mesma página - filosoficamente falando. Ainda assim, o diálogo prosseguiu, rumo ao desalento.
Vamos supor que, de forma filosófica, eu venha buscando a universalização do nosso amor. Sim, ainda me prendo a esse romantismo exacerbado, de modo a querer gritar para o mundo inteiro tudo aquilo que sinto por você. Mas a racionalização desse amor grita mais alto, impedindo o romantismo de ser ouvido. Filosoficamente trágico.

Ainda que filosofássemos sobre amor durante toda a noite,
não nos livraríamos desses malditos paradoxos.
Mas, afinal, de que importa?
Nosso amor nunca foi dos mais ortodoxos.

Se nosso amor estivesse de alguma forma relacionado com a filosofia, ele seria o conceito socrático-platônico de amor.

Pena que, assim como Sócrates e Platão, nosso amor já morreu há tempos.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Sobre ironias e sentidos

Irônico te ver assim, apaixonada mais uma vez.

Eu gosto mesmo é de sentir, sabe? Nunca fui muito bom com as palavras. Jamais soube organizá-las de maneira concisa, a ponto de me fazer entender. Provavelmente por isso eu goste tanto de ouvir.
Se eu te falasse que não gosto muito de monossílabas, você acreditaria? Pois é. E coube justamente a ti interpretar o papel de decepção monossilábica em minha vida. Trágico.

Minha visão também não é das melhores. Ainda assim, passei os últimos meses observando as indas-e-vindas do nosso amor. E não desgrudei os olhos de ti. Nem ao menos uma vez.
Se eu te falasse que adoro sentir tua respiração bem próxima ao meu pescoço, você acreditaria? Me identifico também com o tom crescente e calmo da sua voz. E com os arrepios que você me faz sentir toda vez que conversamos.

É, eu definitivamente não gosto de monossílabas. Talvez esse seja o motivo de o meu coração entrar em um tic-tac desritmado a cada vez que te vejo ansiar pelo "fim".
Se essa história representasse alguma parte do corpo humano, eu gostaria que fosse o pulmão. Afinal, mesmo depois de tantos entreveros, ainda temos fôlego para mais uma rodada. Só espero que desta vez os dados me favoreçam.

Irônico te ver assim, apaixonada mais uma vez. Estranho não ser por mim.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Sobre Marcelo e Clarice: ato final



O telefone toca. Marcelo move-se vagarosamente para atendê-lo.
- Clarice? São 3h30 da manhã. O que aconteceu?
- Precisava ouvir tua voz pela última vez. Tô mal, Marcelo.

Um estranho arrepio percorre toda a extensão do corpo de Marcelo, que se levanta da cama rapidamente. Assustado, ele se limita a balbuciar palavras incompreensíveis. Do outro lado da linha, nenhum som é ouvido.

Marcelo se lembra de que a mãe de Clarice tinha voltado para a clínica de reabilitação, e que por isso Clarice está sozinha. Ele sabe que precisa agir.
Marcelo se veste e vai de carro até a casa de Clarice, que fica há poucos quarteirões de distância. No caminho, várias coisas passam por sua cabeça.

Na casa de Clarice, o silêncio predomina. Isto é, até a chegada de Marcelo, que adentra o lugar aos berros, clamando pelo nome daquela que há meses lhe havia conquistado o coração.
O eco é grande. No entanto, nenhum som é ouvido de volta.
Marcelo, ofegante, sobe as escadas com dificuldade, ainda clamando pelo nome de Clarice.
Novamente, somente o som de sua voz é ouvido.

Ao entrar no quarto de Clarice, Marcelo percebe que a bagunça normalmente vista deu lugar a uma estranha organização. Algo não estava certo. E Clarice não estava lá.

A mente de Marcelo é pura desordem. Encurralado pelo medo, ele já não consegue mais gritar por Clarice. Um silêncio ensurdecedor toma conta do ambiente.
Os passos de Marcelo ficam mais rápidos. Ainda assim, imprecisos.

Ele passa pelo corredor, checa os outros quartos, desce as escadas novamente em direção à sala e nada. O silêncio é cada vez mais amedrontador. Nada se ouve, somente a respiração ofegante de Marcelo.
Seus batimentos cardíacos ficam mais rápidos. Ainda assim, imprecisos.

Por impulso, Marcelo resolve checar a cozinha.

Marcelo, um jovem impulsivamente certeiro!

Em cima da mesa da cozinha, é possível observar uma garrafa de vodka meio-cheia.
Caída, ao lado da mesa, é possível observar uma alma completamente vazia.
Ao se aproximar, Marcelo vê sangue em volta do corpo de sua amada.
Ao olhar para ela, vê uma garganta profundamente cortada.
Repousando ao lado do corpo, um canivete já bem conhecido.
Não tão longe dali, estava um papel de carta, igualmente desvanecido.
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Se for possível, lhes peço para que leiam a carta em voz baixa. Marcelo está com dor de cabeça.

"Para Marcelo:

Hipoteticamente falando, talvez eu esteja lhe escrevendo em tom de despedida. Quem sabe não seja melhor assim?
Ainda não sei o que te dizer. Ou mesmo se quero te dizer algo. Minha mente anda confusa ultimamente, analisando as ínfimas possibilidades de toda essa loucura prosperar. Mas, de forma hipotética, digamos que definitivamente vai ser melhor assim.
Quem sabe, hipoteticamente, nossa loucura ainda prosperará. De fato, acho que vai prosperar.

Mas talvez seja só eu.
 Clarice"

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Sobre todas as músicas do Two Door Cinema Club

O espetáculo começou às 20h em ponto. Nossa troca de olhares, todavia, tinha começado bem antes disso. Durante todo o tempo, eu a encarava com a sensação de que já a conhecia há muito tempo. E ela provavelmente percebeu isso. Mas eu não podia evitar. Em alguns momentos, ela parecia incomodada com o meu olhar intenso. Pudera! Eu a observava tal qual uma leoa espreita a manada de búfalos antes de um eventual ataque. Neste caso, minhas intenções com a moça eram bem diferentes.

No palco, atores contracenavam com a maestria que lhes é característica. Na minha cabeça, as cenas eram outras. Tudo que eu pude fazer foi observar enquanto ela mantinha os olhos grudados no palco - ocasionalmente virando para o lado para ver se eu ainda a observava. Confesso que estes eram os momentos mais aguardados do "espetáculo" que se passava pela minha cabeça. Ela era magnífica. E eu já a conhecia, definitivamente.

Ela usava um vestido cinza, acompanhado de uma meia-calça preta. Seus cabelos compridos e escuros balançavam conforme a música. Ela era a mais bela canção do álbum, sem dúvida. E foi aí que tive certeza de que já a conhecia. Boa parte das músicas do Two Door Cinema Club foram escritas para ela. Ela era a protagonista. "Eat That Up, It's Good For You", "You're Not Stubborn", "Impatience is a Virtue" e "Something Good Can Work" foram feitas para ela. E a descrevem com uma melodia tragicamente bem elaborada. Exatamente como devia ser.

Conforme o tempo passava, mais adrenalina era adicionada ao ambiente. Minhas mãos transpiravam continuamente. Mas isso pouco importava. A noite era dela. Tudo ali era sobre ela. 

Na minha cabeça, era sobre como eu me sentia em relação a ela. E sobre como terminaríamos a noite. 

Fumando cigarros no teatro.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Sobre Marcelo e Clarice: cena 3ª

Cena 1ª
Cena 2ª

Marcelo, um jovem filosoficamente impulsivo, e politicamente inconstante. Confuso, visivelmente desgastado, e, ainda assim, extraordinariamente prático. Simplesmente Marcelo.

Preocupado com Marcelo, que há dias não aparece no colégio, Henrique decide visitá-lo depois da aula para saber o que está acontecendo, mesmo que ele já tenha ideia do que se passa com seu melhor amigo.

Henrique toca a campainha e espera pacientemente até que alguém venha atender a porta.

- Oi, Dona Natalina. O Marcelo tá por aí?
- Quanto tempo, Henrique! Sobe lá, acho que só você consegue tirar o Marcelo daquele quarto.

Henrique bate na porta e espera pacientemente até que Marcelo venha abri-la.
Mas ele não vem.
Henrique bate novamente.
Em vão.

Henrique decide entrar no quarto, e se depara com o caos. A impressão é de que um maremoto bagunçou todo aquele lugar. Um maremoto de informações, talvez. De informações não tão bem assimiladas.

Fotos e livros espalhados por todo o quarto.
Gavetas e armários abertos e totalmente revirados.
Latas de energético empilhadas sobre a prateleira.
Uma garrafa de whisky pela metade ajuda a decorar o ambiente.
Praticamente escondido em meio a tudo isso, está Marcelo, jogado sobre a cama. Imóvel.

Henrique decide não acordá-lo. Prefere aproveitar o momento para perscrutar o quarto e tentar entender o que se passa com seu melhor amigo. Dentro de uma das gavetas da cômoda, um papel rosado, manchado de sangue, lhe chama a atenção.

"Para Marcelo:

A vida é engraçada. Antes de te conhecer, não me via conectada a nada. Também não enxergava nada que me prendesse a esse mundo. Não que eu esteja conectada ou presa a você, mas é bom saber que agora eu consigo ver um ponto de partida. Nunca te disse isso. E provavelmente nunca direi. Mas eu gostaria que soubesse.
Um dia, se tudo der certo, não precisarei mais fazer essas cartas, pois serei capaz de te dizer tudo isso abertamente. Enquanto esse dia não chega, continuarei a te escrever, na esperança de que você possa se encontrar nas minhas palavras.
Não quero tuas sonatas em ré.
Marcelo, eu quero ser tua.
Da cabeça ao pé.

Clarice"


A lista com as últimas chamadas do celular de Marcelo era particularmente perturbadora. Durante os dois últimos dias, ele recebeu diversas ligações de Clarice. Nenhuma delas foi atendida.
Intrigado, Henrique ainda tenta olhar mais algumas coisas no celular, mas a bateria acaba logo depois. Frustrante.

Em ritmo lento, Marcelo desperta. Estranhamente, ao abrir os olhos e enxergar Henrique mexendo em suas coisas, sequer esboça reação. Um olhar desorientado e distante é prontamente confrontado por um olhar de reprovação.

- O que você tá fazendo aqui, cara?
- Você sumiu. Não dá notícias. Ninguém sabe de você. Até sua vó tá preocupada, Marcelo. 
   Olha em volta. Te liga na zona que tá o teu quarto. O que você tá fazendo com a sua vida, cara?
- É a Clarice. Ela me desmonta.

Henrique era um bom amigo. Marcelo sabia disso.

Marcelo, um jovem impulsivamente filosófico, e musicalmente abalado. E não era para menos: seu coração havia sido demitido por justa causa.

Talvez não tão justa assim.