A história a seguir é um relato sobre o amor passageiro que atordoou completamente a vida de Clarice e Marcelo. Se for possível, lhes peço para que leiam em voz baixa. Clarice está com dor de cabeça.
O telefone toca. Clarice move-se vagarosamente para atendê-lo.
- Marcelo? São 3h30 da manhã. O que aconteceu?
- Precisava ouvir tua voz. Tô mal, Clarice.
Marcelo acorda todos os dias às 5h30 da manhã para ir à escola. Quer dizer, 5h30 é o horário em que seu despertador toca. Marcelo já está acordado bem antes desse horário. Tem sido difícil dormir com tudo que anda lhe acontecendo.
Clarice não tem um horário certo para acordar. Muitas vezes o relógio marca 15h e ela ainda está na cama, procurando motivos para se levantar (ela raramente encontra). A vida de Clarice está bagunçada. Ela está no último ano de artes cênicas, mas já não está tão animada como no começo do curso. Fora isso, sua mãe está desempregada e voltou a ter problemas com bebida (algo que, de certo modo, também acaba interferindo em sua vida).
Marcelo está no último ano do colegial. Já estamos em junho, e ele ainda não sabe o que pretende cursar na faculdade. Marcelo gosta da área de humanas. História o fascina, mas não como antes. Recentemente, ele tomou gosto pela política. Passa horas na biblioteca do colégio revirando livros sobre Geopolítica. Filosofia e Sociologia também estão entre suas matérias favoritas.
Clarice nunca se interessou pelos estudos. Cursa teatro desde pequena. Também fez cursos de inglês e alemão, mas não terminou nenhum dos dois. É no palco que ela se encontra (ou, pelo menos, se encontrava). Tem sido difícil se concentrar durante as peças. Ultimamente, Clarice nem tem frequentado as aulas.
Marcelo se interessa por literatura estrangeira, filmes e seriados. Ele vinha lendo "O retrato de Dorian Gray", obra de Oscar Wilde. No entanto, aparentemente sem motivo, optou por abandonar a leitura, já que o livro passou os dois últimos dias jogado em cima de sua cama, estranhamente aberto na página 84. Quando não está com a cabeça enfiada em um livro, se mete a assistir filmes dos mais diversos tipos, especialmente os de ficção. O download de inúmeros seriados comprometeu a memória do notebook de Marcelo. Talvez seja necessário fazer um backup. E talvez não seja só o notebook que precise de um backup...
Clarice sequer lembra do último livro que leu. Tampouco tem assistido filmes ou seriados, algo que ela costumava fazer com frequência. Televisão? Muito menos. Quando não está dormindo, ela se tranca na internet. O histórico de seu computador indica uma bizarra obsessão por serial killers e armas. Clarice inclusive possui um canivete, já desgastado, que ela usa para desferir cortes contra seu pulso. O ato de se cortar com estilete não é uma novidade para Clarice, mas tornou-se muito mais frequente com o passar do tempo.
Marcelo costumava ser um jovem muito fechado. A música o ajudou a melhorar nesse aspecto. Marcelo fez aulas de música e hoje toca piano, violão e gaita. Ele se tornou mais comunicativo, mas às vezes só consegue se expressar através da música.
Clarice não toca nenhum instrumento. Ela até tentou aprender a tocar piano quando era menor, mas desistiu rapidamente. Clarice nunca foi muito comunicativa, e tem crises de depressão. O teatro sempre foi sua zona de conforto, mas parece que isso foi perdendo efeito ao longo dos anos. Clarice também pratica o "backup": sempre quando sua memória está beirando a lotação, ela pega o seu diário e passa algumas dessas informações para lá. Esse backup resolve. Momentaneamente.
Os pais de Marcelo morreram em um acidente de carro quando ele ainda era pequeno; com isso, Marcelo foi criado por seus avós maternos. Seu avô faleceu há alguns anos, e hoje a avó de Marcelo é tudo que lhe resta. Marcelo tem uma afeição enorme por sua avó, e faz de tudo para vê-la feliz. Sua avó também faz de tudo por ele, mas não consegue vê-lo feliz pois perdeu a visão em um trágico incidente com gás de cozinha. Mas ela sente a felicidade do neto. Ou melhor, sentia. Marcelo não anda feliz.
Clarice não sabe, mas foi vítima de um estupro. Sua mãe pensou em abortá-la por diversas vezes, mas não conseguiu. Isso explica a falta de carinho da mãe para com a filha. Isso também explica o porquê de a mãe de Clarice ter se refugiado no alcoolismo. Hoje, ela é uma mulher de meia idade, que passa a maior parte do tempo na sala de casa, bêbada, tentando, em vão, recuperar o amor da filha. Pena que elas só tenham uma a outra.
Marcelo está louco para completar 18 anos e tirar carteira de motorista. Desde que o avô faleceu, o carro continua na garagem, intacto, sendo observado diariamente por Marcelo, que não vê a hora de dirigi-lo.
Clarice tem carteira de motorista há três anos, mas nunca dirigiu um carro. Ela sequer tem interesse em dirigir; só tirou a carta devido à pressão imposta por sua mãe, que prontamente lhe deu um carro de presente. O carro ainda está lá, imóvel, empoeirado pelo tempo.
Sobre Clarice:
"Ela está longe de ser a melhor pessoa do mundo. Mas tenho quase certeza de que é a melhor pessoa que já conheci. Afinal, o que é que essa menina tem?
Ela não se esforça pra ser legal comigo (nem com ninguém) e me trata com frieza durante quase todo o tempo. Mas quando estou a ponto de perder a paciência, lá vem ela com todo aquele charme que lhe é característico. Sou obrigado a baixar a guarda. Ela me desmonta.
Não. Eu não quero que me esqueça.
Sou Clarice. Do pé à cabeça."
Para Marcelo:
"A vida é engraçada. Antes de te conhecer, não me via conectada a nada. Também não enxergava nada que me prendesse a esse mundo. Não que eu esteja conectada ou presa a você, mas é bom saber que agora eu consigo ver um ponto de partida. Nunca te disse isso. E provavelmente nunca te direi. Mas eu gostaria que soubesse.
Um dia, se tudo der certo, não precisarei mais fazer essas cartas, pois serei capaz de te dizer tudo isso abertamente. Enquanto esse dia não chega, continuarei a te escrever, na esperança de que você possa se encontrar nas minhas palavras.
Não quero tuas sonatas em ré.
Marcelo, eu quero ser tua. Da cabeça ao pé."
Não ouse levantar a voz. Clarice ainda está com dor de cabeça.
Um dia, se tudo der certo, não precisarei mais fazer essas cartas, pois serei capaz de te dizer tudo isso abertamente. Enquanto esse dia não chega, continuarei a te escrever, na esperança de que você possa se encontrar nas minhas palavras.
Não quero tuas sonatas em ré.
Marcelo, eu quero ser tua. Da cabeça ao pé."
Não ouse levantar a voz. Clarice ainda está com dor de cabeça.